ATIVIDADE DE LEITURA E COMPREENSÃO SOBRE O CAPÍTULO "BALEIA" ("VIDAS SECAS", DE GRACILIANO RAMOS) - MODERNISMO BRASILEIRO
BALEIA
(Graciliano Ramos)
A cachorra Baleia estava para morrer.
Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num
fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As
chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.
Por isso Fabiano imaginara que ela
estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário
de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas
estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos
sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base,
cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.
Então Fabiano resolveu matá-la. Foi
buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez
tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.
Sinhá Vitória fechou-se na camarinha,
rebocando os meninos assustados, que adivinhavam desgraça e não se cansavam de
repetir a mesma pergunta:
- Vão bulir com a Baleia?
Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho,
os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia corria
perigo.
Ela era como uma pessoa da família:
brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferenciavam, rebolavam na
areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das
cabras.
Quiseram mexer na taramela e abrir a
porta, mas sinhá vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou-se
por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e
espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem,
aperreou-se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.
Ela também tinha o coração pesado, mas
resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre
da Baleia.
Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se
derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou.
Coitadinha da Baleia.
Os meninos começaram a gritar e a
espernear. E como sinhá Vitória tinha relaxado os músculos, deixou escapar o
mais taludo e soltou uma praga:
- Capeta excomungado.
Na luta que travou para segurar de novo
o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio
enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.
Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinhá
Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou
muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar
cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais,
achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado
mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.
Nesse momento Fabiano andava no copiar,
batendo castanholas com os dedos. Sinhá Vitória encolheu o pescoço e tentou
encostar os ombros às orelhas. Como isto era impossível, levantou um
pedaço da cabeça.
Fabiano percorreu o alpendre, olhando as
baraúnas e as porteiras, açulando um cão invisível contra animais invisíveis:
-Ecô! ecô!
Em seguida entrou na sala, atravessou o
corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia
coçando-se e a esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao
rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se
desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando
apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela,
esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou
de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse
bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou
a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos de Baleia, que se pôs
latir desesperadamente.
Ouvindo o tiro e os latidos, sinhá
Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na caca chorando alto.
Fabiano recolheu-se.
E Baleia fugiu precipitada, rodeou o
barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às
panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em
três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o
chiqueiro das cabras. Demorou-se aí por um instante, meio desorientada, saiu
depois sem destino, aos pulos.
Defronte do carro de bois faltou-lhe a
perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente em dois pés,
arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e
esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.
Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz
de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali:
cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava,
tinha as folhas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos
outros. Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou
a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de
banda. Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando as
unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se
junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas. Uma sede horrível
queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um
nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano.
Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se
quase imperceptíveis.
Como o sol a encandeasse, conseguiu
adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a
pedra.
Olhou-se de novo, aflita. Que lhe
estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se.
Sentiu o cheiro bom dos preás que
desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros
viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o
focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os
preás, que pulavam e corriam em liberdade.
Começou a arquejar penosamente, fingindo
ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer.
O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinha fugido.
Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo
de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um
objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida
de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se
daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o
rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto
dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em
submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.
O objeto desconhecido continuava a
ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo
das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e a
coisa perigosa tinham-se sumido.
Abriu os olhos a custo. Agora havia uma
grande escuridão, com certeza o sol desaparecera. Os chocalhos das cabras
tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela
vizinhança.
Baleia assustou-se. Que faziam aqueles
animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao
bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a
ausência deles.
Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido
um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a importância em que se
achava nem percebia que estava livre de responsabilidades.
Uma angústia apertou-lhe o pequeno
coração. Precisava vigiar cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar
pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na
esteira, por baixo do caritó onde sinhá Vitória guardava o cachimbo.
Uma noite de inverno, gelada e nevoenta,
cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos
arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de
varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e
Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora
parecia que a fazenda se tinha despovoado.
Baleia respirava depressa, a boca
aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o
que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem
difícil no barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.
Provavelmente estava na cozinha, entre
as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, sinhá Vitória retirava
dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado,
e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as
pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e
saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.
A tremura subia, deixava a barriga e
chegava ao peito de Baleia. Do outro peito para trás era tudo insensibilidade e
esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru
penetravam na carne meio comida pela doença.
Baleia encostava a cabecinha fatigada na
pedra. A pedra estava fria, certamente sinhá Vitória tinha deixado o fogo
apagar-se muito cedo.
Baleia queria dormir. Acordaria feliz,
num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As
crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num
chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.
QUESTÕES SOBRE UM TRECHO DO LIVRO “VIDAS
SECAS” (GRACILIANO RAMOS)
1.
Graciliano Ramos é um dos principais autores da segunda
fase do Modernismo no Brasil, marcada pelo engajamento social e político. Em Vidas
Secas, isso se manifesta principalmente:
A)
pela celebração da vida simples no campo, com linguagem rebuscada e poética.
B) pela idealização dos sertanejos como heróis românticos e nacionalistas.
C) pela denúncia das desigualdades sociais e pela representação crua da vida no
sertão.
D) pelo uso de narrativas policiais com linguagem jornalística.
2.
No trecho lido, a linguagem utilizada por Graciliano Ramos
apresenta uma de suas marcas estilísticas mais notáveis. Assinale a alternativa
que melhor representa essa marca:
A)
O uso de linguagem figurada e grandiloquente, para emocionar o leitor.
B) O predomínio de um vocabulário culto e elaborado, voltado para o público
erudito.
C) A objetividade da narração, com vocabulário enxuto e frases curtas,
refletindo o ambiente árido e a rudeza dos personagens.
D) A construção de frases longas e labirínticas, que refletem o fluxo de
pensamento dos personagens.
3.
A personagem Baleia é construída com profundidade
simbólica ao longo do trecho. Seu sofrimento e sua morte provocam forte
comoção, pois:
A)
é o único personagem a representar o humor e o otimismo do grupo.
B) tem uma consciência humanizada, sendo tratada quase como um membro da
família.
C) simboliza a prosperidade que Fabiano e sua família conquistaram.
D) representa a lógica racional e prática da vida no sertão.
4.
Acerca da obra Vidas Secas, assinale V para Verdadeiro e F para Falso:
( ) O trecho reflete o regionalismo
idealizado e pitoresco da literatura do século XIX.
( ) A narração em terceira pessoa e a
descrição objetiva do sofrimento de Baleia são típicas do estilo de Graciliano
Ramos.
( ) A cena mostra como a violência
contra os animais era aceita e justificada no contexto do sertão nordestino.
( ) A ausência de marcas de oralidade e
de falas dos personagens demonstra a rigidez e frieza emocional do narrador.
5.
Explique de que modo a morte de Baleia, narrada de forma
lenta e detalhada, contribui para a crítica social presente na obra.
6.
Como o estilo de Graciliano Ramos em "Vidas
Secas" se diferencia dos autores da primeira fase do Modernismo
brasileiro?
7.
Relacione os elementos da primeira coluna às
características correspondentes da segunda:
1.
Baleia é tratada como parte da família,
com sentimentos e desejos.
2.
A descrição da miséria e da doença no
sertão nordestino.
3.
O estilo direto, frases curtas e
vocabulário econômico.
4.
A ambientação nordestina com destaque
para a seca e a pobreza.
( ) Crítica social e denúncia das desigualdades
( ) Estilo seco e objetivo,
antirretórico
( ) Regionalismo com viés crítico e
realista
( ) Humanização de uma personagem não
humana
8.
Em Vidas Secas, Graciliano Ramos utiliza a narração
impessoal e objetiva para retratar com fidelidade a vida dura no sertão. No
trecho selecionado, a personagem Baleia apresenta comportamentos e pensamentos
que, apesar de pertencerem a um animal, revelam grande carga emocional e
crítica social. Que efeito de sentido é produzido pela humanização de Baleia
nesse trecho?
GABARITO
1- 1 Gabarito: C
📌 Comentário:
A segunda fase modernista (1930-1945) se destaca pelo foco em temas sociais e
regionalistas. Graciliano, especialmente, retrata a miséria e a opressão com
estilo conciso e seco.
2- 2 Gabarito: C
📌 Comentário:
A linguagem seca e econômica acompanha a aridez do sertão e a brutalidade das
condições de vida.
3- 3 Gabarito: B
📌 Comentário:
Baleia é personificada ao longo do romance, sendo vista como parte da família e
revelando sensações, pensamentos e desejos.
4- 4 Gabarito:
F – V – V – F
📌 Comentário:
O regionalismo de Graciliano não é idealizado; é crítico e cru. A oralidade
está presente nos diálogos e na perspectiva das personagens (ex: fala dos
meninos, voz de Sinhá Vitória).
5- 5 Resposta esperada:
A descrição minuciosa e angustiante da morte de Baleia espelha a violência da
realidade vivida pelos sertanejos, marcada pela miséria, abandono e
desumanização. A morte do animal, que é tratado como um membro da família, com
sentimentos e consciência, revela o grau de sofrimento a que estão submetidos
todos naquele contexto, inclusive os animais. Essa técnica reforça a crítica de
Graciliano Ramos à precariedade da vida no sertão.
6- 6 Resposta esperada:
Enquanto os autores da primeira fase (como Mário de Andrade e Oswald de
Andrade) exploravam a liberdade formal, a ironia e a renovação da linguagem com
humor e experimentação, Graciliano Ramos apresenta uma prosa mais densa,
objetiva e introspectiva, marcada pela crítica social e pela economia verbal.
Em vez de exaltar o Brasil de forma entusiástica, ele mostra sua face mais
dura, especialmente no interior nordestino.
7- 7 Gabarito:
1 – (D)
2 – (A)
3 – (B)
4 – (C)
8- 8 Resposta esperada:
A humanização de Baleia aprofunda o impacto emocional da narrativa, tornando
sua dor compreensível e próxima do leitor. Ao dar ao animal pensamentos,
sensações e memórias, o autor provoca empatia e denuncia a brutalidade da vida
no sertão. A morte de Baleia, lenta e consciente, evidencia a violência
estrutural da pobreza, que atinge humanos e animais, desafiando a ideia de que
o sofrimento no sertão seja natural ou inevitável.
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