Atividade sobre o conto "MARIA" (Conceição Evaristo)

 MARIA (Conceição Evaristo)


Maria estava parada há mais de meia hora no ponto de ônibus. Estava cansada de esperar. Se a distância fosse menor, teria ido a pé. Era preciso mesmo ir se acostumando com a caminhada. Os ônibus estavam aumentando tanto! Além do cansaço, a sacola estava pesada. No dia anterior, no domingo, havia tido festa na casa da patroa. Ela levava para casa os restos. O osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa. Ganhara as frutas e uma gorjeta. O osso a patroa ia jogar fora. Estava feliz, apesar do cansaço. A gorjeta chegara numa hora boa. Os dois filhos menores estavam muito gripados. Precisava comprar xarope e aquele remedinho de desentupir o nariz. Daria para comprar também uma lata de Toddy. As frutas estavam ótimas e havia melão. As crianças nunca tinham comido melão. Será que os meninos gostavam de melão?

A palma de umas de suas mãos doía. Tinha sofrido um corte, bem no meio, enquanto cortava o pernil para a patroa. Que coisa! Faca-laser corta até a vida!

Quando o ônibus apontou lá na esquina, Maria abaixou o corpo, pegando a sacola que estava no chão entra as suas pernas. O ônibus não estava cheio, havia lugares. Ela poderia descansar um pouco, cochilar até a hora da descida. Ao entrar, um homem levantou lá de trás, do último banco, fazendo um sinal para o trocador. Passou em silêncio, pagando a passagem dele e de Maria. Ela reconheceu o homem. Quando tempo, que saudades! Como era difícil continuar a vida sem ele. Maria sentou-se na frente. O homem assentou-se ao lado dela. Ela se lembrou do passado. Do homem deitado com ela. Da vida dos dois no barraco. Dos primeiros enjoos. Da barriga enorme que todos diziam gêmeos, e da alegria dele. Que bom! Nasceu! Era um menino! E haveria de se tornar um homem. Maria viu, sem olhar, que era o pai do seu filho. Ele continuava o mesmo. Bonito, grande, o olhar assustado não se fixando em nada e em ninguém. Sentiu uma mágoa imensa. Por que não podia ser de outra forma? Por que não podiam ser felizes? E o menino, Maria? Como vai o menino? cochichou o homem. Sabe que sinto falta de vocês? Tenho um buraco no peito, tamanha a saudade! Tou sozinho! Não arrumei, não quis mais ninguém. Você já teve outros... outros filhos? A mulher baixou os olhos como que pedindo perdão. É. Ela teve mais dois filhos, mas não tinha ninguém também! Homens também? Eles haveriam de ter outra vida. Com eles tudo haveria de ser diferente. Maria, não te esqueci! Tá tudo aqui no buraco do peito...

O homem falava, mas continuava estático, preso, fixo no banco. Cochichava com Maria as palavras, sem entretanto virar para o lado dela. Ela sabia o que o homem dizia. Ele estava dizendo de dor, de prazer, de alegria, de filho, de vida, de morte, de despedida. Do buraco-saudade no peito dele... Desta vez ele cochichou um pouquinho mais alto. Ela, ainda sem ouvir direito, adivinhou a fala dele: um abraço, um beijo, um carinho no filho. E logo após, levantou rápido sacando a arma. Outro lá atrás gritou que era um assalto. Maria estava com muito medo. Não dos assaltantes. Não da morte. Sim da vida. Tinha três filhos. O mais velho, com onze anos, era filho daquele homem que estava ali na frente com uma arma na mão. O de lá de trás vinha recolhendo tudo. O motorista seguia a viagem. Havia o silêncio de todos no ônibus. Apenas a voz do outro se ouvia pedindo aos passageiros que entregassem tudo rapidamente. O medo da vida em Maria ia aumentando. Meu Deus, como seria a vida dos seus filhos? Era a primeira vez que ela via um assalto no ônibus. Imaginava o terror das pessoas. O comparsa de seu ex-homem passou por ela e não pediu nada. Se fossem outros os assaltantes? Ela teria para dar uma sacola de frutas, um osso de pernil e uma gorjeta de mil cruzeiros. Não tinha relógio algum no braço. Nas mãos nenhum anel ou aliança. Aliás, nas mãos tinha sim! Tinha um profundo corte feito com faca-laser que parecia cortar até a vida.

Os assaltantes desceram rápido. Maria olhou saudosa e desesperada para o primeiro. Foi quando uma voz acordou a coragem dos demais. Alguém gritou que aquela puta safada conhecia os assaltantes. Maria assustou-se. Ela não conhecia assaltante algum. Conhecia o pai do seu primeiro filho. Conhecia o homem que tinha sido dela e que ela ainda amava tanto. Ouviu uma voz: Negra safada, vai ver que estava de coleio com os dois. Outra voz ainda lá do fundo do ônibus acrescentou: Calma gente! Se ela estivesse junto com eles, teria descido também. Alguém argumentou que ela não tinha descido só para disfarçar. Estava mesmo com os ladrões. Foi a única a não ser assaltada. Mentira, eu não fui e não sei porquê. Maria olhou na direção de onde vinha a voz e viu um rapazinho negro e magro, com feições de menino e que relembrava vagamente o seu filho. A primeira voz, a que acordou a coragem de todos, tornou-se um grito: Aquela puta, aquela negra safada estava com os ladrões! O dono da voz levantou e se encaminhou em direção a Maria. A mulher teve medo e raiva. Que merda! Não conhecia assaltante algum. Não devia satisfação a ninguém. Olha só, a negra ainda é atrevida, disse o homem, lascando um tapa no rosto da mulher. Alguém gritou: Lincha! Lincha! Lincha!... Uns passageiros desceram e outros voaram em direção a Maria. O motorista tinha parado o ônibus para defender a passageira: Calma, pessoal! Que loucura é esta? Eu conheço esta mulher de vista. Todos os dias, mais ou menos neste horário, ela toma o ônibus comigo. Está vindo do trabalho, da luta para sustentar os filhos... Lincha! Lincha! Lincha! Maria punha sangue pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos. A sacola havia arrebentado e as frutas rolavam pelo chão. Será que os meninos gostam de melão?

Tudo foi tão rápido, tão breve. Maria tinha saudades do seu ex-homem. Por que estavam fazendo isto com ela? O homem havia segredado um abraço, um beijo, um carinho no filho. Ela precisava chegar em casa para transmitir o recado. Estavam todos armados com facas-laser que cortam até a vida. Quando o ônibus esvaziou, quando chegou a polícia, o corpo da mulher já estava todo dilacerado, todo pisoteado.

Maria queria tanto dizer ao filho que o pai havia mandado um abraço, um beijo, um carinho.

QUESTÕES DE COMPREENSÃO E INTERPRETAÇÃO:


1. Como o cansaço e as dificuldades diárias de Maria são apresentados no conto?

O cansaço e as dificuldades de Maria são apresentados através de suas longas esperas pelo ônibus, o peso da sacola que carrega e a luta constante para sustentar os filhos. Essas dificuldades revelam a condição precária de vida de Maria, uma mulher trabalhadora, que precisa lutar diariamente para sobreviver.

2. Qual é o significado das frutas e do osso de pernil na sacola de Maria?

As frutas e o osso de pernil simbolizam as sobras e migalhas da vida de Maria, destacando a desigualdade social e a luta pela sobrevivência. As frutas representam um pequeno luxo para seus filhos, enquanto o osso do pernil, algo que seria descartado pela patroa, é valorizado por Maria como alimento.

3. Como é retratada a relação de Maria com o pai de seu primeiro filho?

A relação é marcada pela saudade e pelo desejo não realizado de uma vida em comum. O reencontro desperta em Maria sentimentos de amor e dor, lembrando-a de um passado que ela ainda guarda com carinho, mas que também é fonte de sofrimento devido à ausência e ao abandono.

4. Qual é o impacto do reencontro de Maria com seu ex-companheiro?

O reencontro com o ex-companheiro traz à tona as memórias de uma vida que poderia ter sido diferente, mas também antecipa o desfecho trágico, mostrando o quanto as circunstâncias de vida dos dois os levaram por caminhos opostos, culminando na tragédia que se desenrola no ônibus.

5. Por que Maria é acusada injustamente pelos passageiros do ônibus?

Maria é acusada injustamente por preconceito racial e de classe. Os passageiros associam sua cor e condição social à criminalidade, o que reflete os estereótipos racistas e a tendência de julgar pessoas negras de maneira preconceituosa.


QUESTÕES DE ANÁLISE LITERÁRIA:


1. Como Conceição Evaristo utiliza a narrativa em terceira pessoa para explorar os sentimentos internos de Maria?

A narrativa em terceira pessoa permite que o leitor tenha acesso aos pensamentos e sentimentos mais íntimos de Maria, como sua saudade, seus medos e suas preocupações. O uso do fluxo de consciência intensifica essa exploração, dando profundidade à personagem.

2. Que papel a violência desempenha na vida de Maria?

A violência permeia a vida de Maria de várias formas: a violência física, como o linchamento ao final do conto, e a violência simbólica, representada pela exclusão social e as agressões cotidianas que sofre por ser uma mulher negra e pobre. Ambas refletem a opressão estrutural a que está submetida.

3. Examine o uso das "facas-laser" como metáfora no conto.

As "facas-laser" simbolizam a brutalidade da vida de Maria, capazes de cortar "até a vida". Essa metáfora reforça a ideia de que as ferramentas do trabalho (a faca) e da opressão (as armas) são instrumentos que destroem e ferem, tanto literal quanto figurativamente.


QUESTÕES TEMÁTICAS:


1. Como o conto "Maria" aborda o tema do racismo e da violência contra a mulher?

O conto aborda o racismo e a violência contra a mulher ao mostrar como Maria é tratada pelos outros passageiros do ônibus. Ela é rapidamente julgada e atacada com base em estereótipos racistas, e sua condição de mulher negra a coloca em uma posição de extrema vulnerabilidade, tanto social quanto fisicamente.

2. Qual é a importância da maternidade no conto?

A maternidade é central na vida de Maria, moldando suas ações e pensamentos. Sua preocupação constante com os filhos e o desejo de proporcionar algo melhor para eles, mesmo que seja um simples melão, destacam a luta diária das mães que vivem em condições adversas.

3. De que forma o conto explora a ideia de "escrevivência", um conceito defendido por Conceição Evaristo?

A "escrevivência" é a ideia de narrar a própria vida e experiências de modo a dar voz às histórias que são geralmente silenciadas. No conto, a vida de Maria, marcada pela pobreza, racismo e violência, é narrada com uma autenticidade que reflete as realidades de muitas mulheres negras, destacando suas lutas e resistências.


QUESTÕES DE REFLEXÃO:


1. O que o final trágico de Maria revela sobre as injustiças sociais e a vulnerabilidade das mulheres negras?

O final trágico revela como as mulheres negras, como Maria, são extremamente vulneráveis a injustiças sociais, preconceitos e violências. O linchamento de Maria é um reflexo brutal de como a sociedade rapidamente desumaniza e pune mulheres negras, mesmo sem provas ou razões.

2. Como a vida de Maria contrasta com as expectativas e aspirações que ela tinha para si mesma e para seus filhos?

A vida de Maria, marcada por dificuldades e sofrimento, contrasta fortemente com seus desejos de uma vida melhor para seus filhos. Suas aspirações são frustradas pela realidade de uma sociedade opressiva que nega oportunidades e perpetua a marginalização.


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